Textos de Apoio para Leitura

O PRAZO PARA POSTAGENS FOI ENCERRADO EM  07/12 ÁS 23h. 


TEXTO 01


Uma trincheira chamada educação:
O papel da educação no contexto da luta de classes

Cássio Diniz



Introdução

Nos últimos 30 anos podemos acompanhar o crescimento do ensino básico brasileiro. Segundo dados do Ministério da Educação e de vários institutos de pesquisa relacionados ao assunto, mais brasileiros puderam ter contato com a escola formal no Brasil, em comparação com as décadas anteriores. Além do crescimento do número de jovens em idade escolar matriculados no ensino básico, podemos perceber também a expansão do ensino universitário brasileiro, principalmente na iniciativa privada.

Sobre esta expansão do ensino brasileiro, Valério Arcary faz uma interessante análise da educação enquanto fator de ascensão social:

A mobilidade social relativa através da educação foi um fator de coesão social do capitalismo brasileiro. A coesão social dependeu, essencialmente, do crescimento econômico que levou a formação da moderna classe trabalhadora urbana. O lugar da educação como instrumento de ascensão social foi, entretanto, muito valorizado pela classe média brasileira, que se destacou pelo esforço de garantir a elevação da escolaridade para seus filhos. Durante meio século, entre 1930/80, o aumento da escolaridade foi um importante fator de ascensão social. A educação era um dos elevadores para aceder á classe média. Os incentivos materiais para buscar uma educação superior foram muito importantes. A recompensa econômica na forma de salários, pelo menos, dez vezes maiores do que o salário mínimo, era suficiente para justificar os sacrifícios. (2010)

Apesar desta constatação não representar uma melhora qualitativa da educação brasileira, e seus resultados ficarem muito aquém do esperado (influenciados principalmente por medidas governamentais neoliberais que buscam a transformação da educação enquanto direito em mercadoria), observamos que ocorre no Brasil uma tendência na sociedade, principalmente na pequena-burguesia e no proletariado, em acreditar que a educação é o grande fator subjetivo que provocará mudanças estruturais no país, retirando o mesmo do estado de paralisia econômica e social reinante nos últimos cinco séculos. E isso tem sido também o discurso usado tanto pelo governo federal quanto nos governos estaduais recentes, apesar de rezarem da cartilha neoliberal. Mesmo diante de resultados parcos, a idéia ainda persiste entre muitos.

Mas até quando é possível defender a idéia de que a educação é que provocará as tais mudanças? Será que os problemas enfrentados pela sociedade, como a miséria de muitos, a exploração, a concentração de renda e a desigualdade social serão resolvidos ou remediados simplesmente aumentando o acesso da população à escolarização? Ou será que o problema é mais estrutural? E estes questionamentos tornam-se maiores em aqueles que desejam realmente a transformação social do país e a superação de seus grandes desafios.

Reiteramos que não buscamos uma visão elitista de educação e muito menos condenar o processo de expansão do ensino básico brasileiro, mas acreditamos ser necessário observar, com um olhar mais crítico, certas idéias-comuns que vão sendo construídas sobre este assunto. Talvez mergulhemos aqui em algumas polêmicas bastante interessantes ao longo deste trabalho. Como diria Carlos Bauer, em seu artigo Política de Expansão do Ensino Superior: a Classe Operária vai ao Campus:

[...] é imperativo reconhecer que a educação, por si só, não é capaz de provocar mudanças profundas na estrutura social existente. Sabe-se que este tipo de postura constitui ingenuidade. (2006, p. 465)


Afinal, o que seria a educação?

Entendemos como educação o processo de formação cultural do ser, sob a forma individual e/ou coletiva. Este processo visa construir no ser humano a capacidade de absorver e formar conhecimento e interagir no mundo social e do trabalho, tendo como prioridade a sua formação enquanto ser social.

Mas ao longo da historia vimos que a educação tem tomado caminho distinto das palavras acima. Até a formação da civilização grega, e posteriormente da romana, a educação foi encarada de forma coletiva, buscando a produção e a reprodução do conhecimento para o uso coletivo da comunidade. Mas com o aumento da complexidade destas comunidades, isto é, o aprofundamento das divisões sociais e o crescimento do aparato estatal, a educação perdeu o caráter coletivo e tornou-se posse de uma elite social e política. A educação, restrita aos donos do poder, tornou-se um instrumento que mantinha a estrutura do sistema, ou em outras palavras, sedimentava o status quo. Para as classes oprimidas e subalternas (camponeses, artesãos, servos, escravos, etc.) a simples capacidade da escrita e da leitura era algo raro. Aníbal Ponce, em seu livro Educação e Luta de Classes, diz sobre a educação destinada ao povo neste período:

A finalidade dessas escolas não era instruir a plebe, mas familiarizar as massas campesinas com as doutrinas cristãs e, ao mesmo tempo, mantê-las dóceis e conformadas. (2000, p. 89)

Essa idéia de apropriação da educação formal por uma classe social vai atravessar toda a Idade Média e Moderna até o momento em que este paradigma for quebrado pelas transformações sociais, econômicas, políticas e culturais do século XVIII.

O Iluminismo, doutrina burguesa oriunda da crítica às contradições do Antigo Regime, vai defender que a educação deve ser um direito a todos os cidadãos, não importando a sua classe social. Foi a primeira vez que se quebrou a idéia de que a educação é exclusividade dos filhos da classe dominante, sendo que a consigna principal era “educação publica, universal, gratuita e laica”. Mas ao florescer das revoluções burguesas e a construção do Estado Burguês (como na França, Inglaterra e os Estados Unidos), vimos que o discurso iluminista vai ser “levemente” modificado. A educação, de certa forma, continuará sendo um direito a todos, dentro do possível, mas haverá uma profunda diferença entre os tipos de educação a ser oferecida para os indivíduos oriundos de classes sociais diferentes. Enquanto que para a burguesia a educação terá como objetivo formar a elite econômica e política da nação, para o proletariado a educação servirá para formar uma força-de-trabalho responsável pela produção. A primeira necessitaria de uma educação mais aprofundada e de melhor qualidade, a segunda precisaria apenas de uma formação bem básica, o suficiente para garantir a continuidade e agregando valor ao trabalho.

Nas “grandes escolas” – diz Basedow, em seguida – além de ensinar a ler, a escrever e a contar, os mestres também devem cuidar “daqueles deveres que são próprios das classes populares”. Mas como nessas escolas só existia um só professor, que estava encarregado de ensinar muitos alunos de idades bastante distintas [...] Basedow se consolava com estas palavras simples e chocantes: “Felizmente, as crianças plebéias necessitam de menos instrução do que as outras, e devem dedicar metade do seu tempo aos trabalhos manuais.”(PONCE, 2000, p. 137)

Mesmo assim muitos países levaram séculos para absorver este ideal. A educação de uma elite quase sempre foi a única preocupação para a maioria dos governos, deixando de lado a maioria da população. Esta situação acabou encontrando um limite ao passo do desenvolvimento do capitalismo e da complexidade dos novos modos de produção a partir do século XIX. Era necessário, para a elite, instruir sua mão-de-obra a fim de se adequar as novas tecnologias. O atraso neste sentido representaria o atraso econômico do país.

Diante deste desafio, o estado brasileiro buscou reverter a lógica existe há séculos, elaborando uma nova política em educação nos últimos 30 anos, onde se buscou a universalização da educação, obrigando o ensino fundamental (e agora o médio) à todos os jovens em idade escolar. Além disso, abriu para a iniciativa privada o mercado da formação profissional em nível técnico e superior, buscando recuperar o tempo perdido na formação da força de trabalho e do capital humano suficiente para o desenvolvimento do capitalismo no país, além, é claro, abrindo um novo ramo lucrativo para o capital. Mas em se tratando de projeto de educação, devemos nos perguntar: qual o modelo de nação queremos construir? E será que tais modelos dominantes atualmente atendem de fato a maioria da sociedade, isto é, os trabalhadores?


Educação como algo a mais no sistema

Além destas transformações, a educação também se transformou em um poderoso instrumento ideológico e cultural. Com o desenvolvimento das relações sociais de produção, evidenciou a disputa direta entre as antagônicas classes sociais (burguesia e proletariado) do capitalismo. A luta de classes e o aumento da consciência da realidade colocaram-se como elementos que em algum momento poderia abalar o sistema e provocar sua queda.

Apesar de não ter sido a primeira vez na história, percebeu-se a necessidade de se impor de fato uma ideologia que destruísse a identidade de classe que o proletariado e demais classes oprimidas poderia adquirir. E a melhor forma de se impor uma ideologia burguesia que corroborasse o ideal capitalista seria justamente a educação oficial/formal oferecida pela escola institucional.

Como diria Karl Marx, o Estado é o comitê central da classe dominante. O Estado burguês, como legítimo representante desta classe, vai buscar por meio de seu instrumento, a escola oficial institucionalizada, construir na sociedade os valores ideológicos da burguesia. Como diria Althusser, “a ideologia tem uma existência material. Isso significa dizer que a ideologia existe sempre radicada em práticas materiais definidos por instituições materiais” (apud SAVIANI, 2009, p. 20), no qual a escola é o Aparelho Ideológico de Estado.

O domínio da burguesia sobre a sociedade baseia-se, entre outras coisas, no domínio ideológico. Impor sua visão de mundo é a principal característica da educação formal executada nas escolas públicas (a serviço do estado) e nas escolas privadas (a serviço direto do capital). Transferir este conhecimento é fundamental para se manter o status quo do sistema. A educação se transformou em uma forma de “doutrinação da esmagadora maioria das pessoas com os valores da ordem social do capital como ordem natural inalterável (Meszáros, 2008, p. 80). Como diria Luiz Antonio Cunha:

O conhecimento tem sempre um caráter de classe, é sempre um conhecimento de classe. Por isso, ele tem na posição de classe do sujeito que conhece uma condição necessária (mas não suficiente) da verdade. (1977, p. 17)

Diante de tal constatação, como é possível defender a possibilidade de transformação sócio-econômica e política por meio da educação formal se a escola é um instrumento da superestrutura do capitalismo? Poderia o Estado burguês provocar a implosão do próprio sistema?


Paulo Freire e a educação libertadora

Na década de 1950, num período no qual ganhava corpo a idéia da Escola Nova e os trabalhos de Anísio Teixeira, o Brasil pôde acompanhar o nascimento de uma nova metodologia de ensino que acabou se transformando em uma teoria do conhecimento. Com o propósito de buscar sanar o problema no analfabetismo em jovens e adultos, Paulo Freire revolucionou a forma de pensar a educação, ao defender que o mesmo deve ser usado para emancipar o homem do obscurantismo e da opressão, ao invés de acorrentá-lo ainda mais. Em sua tese Educação e Atualidade Brasileira,ele diz:

Parece-nos, deste modo, que, das mais enfáticas preocupações de uma educação para o desenvolvimento e para a democracia, entre nós, há de ser a de oferecer ao educando instrumentos com que resista aos poderes do desenraizamento de que a civilização industrial, a que nos filiamos, está amplamente armada. Mesmo que armada igualmente esteja ela, sobretudo, de meios com os quais vem crescentemente ampliando as condições de existência do homem. Fatores de massificação do homem, vale afirmar, resistência à distorções de sua consciência ingênua a formas mais perigosamente incomprometidas com sua existência do que a representada na consciência, por nós chamada de intransitiva. Uma educação que possibilite ao homem discussão corajosa de sua problemática. De sua inserção nesta problemática. Que o coloque em diálogo constante com o outro. Que o predisponha a constantes revisões. À análise crítica de seus achados. A uma certa rebeldia no sentido mais humano da expressão. Que o identifique com métodos e processos científicos. (FREIRE, 1959, p. 33)

Essa nova forma que Paulo Freire dava para a educação provocou uma profunda reflexão sobre o tema e transformou toda uma idéia sobre o papel do ensino para a humanidade, apesar de que no início o próprio autor não tinha uma dimensão da necessidade da transformação real na sociedade:

Em meus primeiros trabalhos, não fiz quase nenhuma referência ao caráter político da educação. Mais ainda, não me referi, tampouco, ao problema das classes sociais, nem à luta de classes (...). Esta dívida refere-se ao fato de não ter dito essas coisas e reconhecer, também, que só não o fiz porque estava ideologizado, era ingênuo como um pequeno-burguês intelectual (1979, p. 43)

Mesmo no início defendendo o nacional-desenvolvimentismo por meio da educação, Paulo Freire teve que se exilar com a ascensão da ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985). Com o tempo, ele desenvolveu seu pensamento pedagógico, no qual teve como fruto a sua obra mais conhecida,Pedagogia do Oprimido, onde pôde finalmente expor sua visão de educação como instrumento de libertação do homem.

Uma vez no exterior, suas idéias foram estudadas e aplicadas em diversos países, em destaques as nações africanas que se libertavam do domínio colonial. Foram as primeiras experiências de adoção desta prática por dentro de regimes, muitos dos quais eram “consideradas” socialistas. O próprio Paulo Freire teve a sua oportunidade ao estar à frente da Secretaria de Educação do município de São Paulo durante a gestão de Luiza Erundina, após a redemocratização do Brasil.


Da teoria revolucionária a prática revolucionária

Com o tempo, as experiências práticas das idéias de Freire na educação formal encontraram muitas barreiras, além de profundas contradições impostas pelo próprio sistema. Não que suas idéias estejam equivocadas. Pelo contrário, se usadas pelos educadores como forma de buscar a emancipação do homem, estará contribuindo para a construção de algo novo, mas apenas como instrumento para uma ação maior.

Mas diante desta nova realidade, cabe-nos fazer uma pergunta: é possível transformar a estrutura social vigente, acabar com a miséria e a desigualdade social, isto é, construir uma sociedade justa e igualitária, por meio da educação formal, principalmente aquela oferecida pelo Estado? Marx nos dá uma visão:

Uma “educação do povo a cargo do Estado” é absolutamente inadmissível. (...) Ao contrário, é preciso pelas mesmas razões, banir da escola qualquer influência do governo e da igreja. (...) é o Estado que precisa ser rudemente educado pelo povo. (apud ORSO, 2008, p. 102)

Parece-nos então que a transformação da estrutura social não poderá ser alcançada por meio dos próprios organismos estatais, como a escola institucional. Esta escola, inserida no contexto e organizada pelo Estado burguês, buscará camuflar as contradições existentes no sistema e, em essência, fará a sua defesa. Não é a toa que vemos a insistência, por parte das secretarias de educação, em projetos político-pedagógicos escolares em sintonia com um projeto único de governo, além das famosas avaliações de desempenho que buscam limitar a autonomia de educadores. Mas isso não significa que a educação como um todo não é importante para o processo de destruição do capitalismo. Ao contrário, ela se transforma em um instrumento importantíssimo para o proletariado avançar na construção de um mundo justo e igualitário.

Cabe-nos lembrar que a transformação radical da estrutura social é o resultado de um processo revolucionário, que no caso, deve ser orquestrado pela classe explorada diretamente pelo capital. Esse processo é dado pela ação direta, na dinâmica da luta de classes, por meio do combate econômico e político contra a burguesia. “Longe de entender a educação como determinante principal das transformações sociais, reconhece ser ela elemento secundário e determinado”(Saviani, 2009, p. 59). A educação deve ser vista como fator, por vezes decisivo, que possibilite instrumentalizar o proletariado, e não como substituto da ação direta do mesmo.

Dermeval Saviani, em seu livro Escola e Democracia, defende a construção e o domínio do conhecimento historicamente acumulado – e construído – pela humanidade com o intuito de aplicá-la para superar a sociedade capitalista. Baseando-se em Gramsci, ele vai defender que uma vez dominado o conhecimento, o proletariado forme os mecanismos necessários a serem usados nos conflitos diretos e indiretos da luta-de-classes. A isso Saviani chamará de Pedagogia Histórico-Crítica. E mais:

Eis aí o sentido da frase “a verdade é sempre revolucionária”. Eis aí também por que a classe efetivamente capaz de exercer a função educativa em cada etapa histórica é aquela que está na vanguarda, a classe historicamente revolucionária. Daí o caráter progressista da educação. [...] (Saviani, 2009, p. 79)

Mas esta pedagogia Histórico-Crítica teria espaço na escola formal? Além de usada na chamada educação informal, aquela ministrada por movimentos sociais, como sindicatos, partidos e comunidades de base, entre outros, a luta pela construção da consciência revolucionária por meio da educação pode encontrar na escola institucional um terreno propício para o seu florescimento. A escola pública, por excelência, é a escola da classe trabalhadora, e não há outro caminho que não seja garantir a esta classe o conhecimento necessário que lhe possibilite interpretar cientificamente o mundo em que vive, além, é claro, instrumentalizá-lo na luta pela construção de uma sociedade econômica e socialmente igualitária. Como diria Trotsky:

Se não esquecermos que a força motriz do processo histórico são as forças produtivas que liberem o homem do domínio da natureza, então compreenderemos que o proletariado necessita apoderar-se de toda a soma do conhecimento e da capacidade elaborada pela humanidade no curso de sua história, para poder emancipar-se e reconstruir a vida sobre a base dos princípios de solidariedade. (apud BAUER, 2008, p. 12)

A escola publica se transforma, então, em espaço de disputa da consciência de seus alunos, isto é, num campo onde se combaterá o projeto político-pedagógico do Estado burguês, e no qual o proletariado avançará da consciência de classe em si para classe para si. Mas para que isso ocorra é necessária a ação de educadores comprometidos com um projeto de uma sociedade diferente. O compromisso do educador com a verdade transformadora é importante nesta ação e, assumindo este compromisso, estará assumindo a defesa e luta de uma classe:

[...] numa sociedade dividida em classes, a classe dominante não tem interesse na manifestação da verdade já que isso colocaria em evidência a dominação que exerce sobre as outras classes. Já a classe dominada tem todo o interesse em que a verdade se manifeste porque isso só viria patentear a exploração a que é submetida, instando-a a se engajar na luta de libertação. (Saviani, 2009, p. 79)

É nesse sentido que ganha importância as organizações de classe, principalmente aquelas ligadas a categoria dos trabalhadores em educação. As entidades sindicais devem ter consciência de que, além de organizarem e dirigirem as lutas econômicas, ser também formadora de agentes para atuarem enquanto educadores militantes de uma causa[1] (daí a importância de uma direção comprometida com um projeto revolucionário). E nisso pode-se incluir as práticas do pensamento freiriano como elemento a mais para a formação do homem livre. Como diria o próprio Freire sobre a ação sindical dos trabalhadores em educação:

A luta dos professores em defesa de seus direitos e de sua dignidade deve ser entendida como um momento importante de sua prática docente, enquanto prática ética. Não é algo que vem de fora da atividade docente, mas é algo que dela faz parte. (FREIRE, 1996, p. 74)

Estes professores, formados como intelectuais orgânicos, na concepção de Gramsci, devem buscar transformar a escola formal institucional em uma verdadeira trincheira do proletariado contra a burguesia, na busca pela destruição de um sistema excludente e desigual, e a construção de uma nova sociedade, de fato justa e igualitária. Somente assim poderemos falar em um novo mundo, que nós trabalhadores tanto desejamos.
  

Referências bibliográficas

ARCARY, Valério.  Menos pobre e menos atrasado, mas não menos injusto: diminuição do papel da educação como fator de mobilidade social, in www.pstu.org.br, acessado em agosto/2010.

BAUER, Carlos. Política de expansão do ensino superior: a classe operária vai ao campus, inEccoS, São Paulo, v. 8, n. 2, p. 449-470, jul./dez. 2006.

BAUER, Carlos. Introdução crítica ao humanismo dialógico de Paulo Freire. Editora José Luiz e Rosa Sundermann. São Paulo, 2008.

CUNHA, Luiz Antonio. Diretrizes para o estudo histórico do ensino superior no Brasil, in Fórum Educacional da Fundação Getulio Vargas. FGV, Rio de Janeiro, jan./mar. 1977.

FREIRE, Paulo. Educação e atualidade brasileira. Tese de concurso para a cadeira de história e filosofia da educação na Escola de Belas-Artes de Pernambuco. Recife, 1959.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à pratica educativa.  Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1996.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Textos sobre educação e ensino, 2ª edição, Moraes, São Paulo, 1992.

MESZÁROS, István. Educação para além do capital. 2ª Edição, Boitempo Editorial, São Paulo, 2008.

ORSO, Paulino José; GONÇALVES, Sebastião Rodrigues; MATTOS, Valci Maria (org.). Educação e luta de classes. São Paulo: Expressão Popular, 2008.

PONCE, Aníbal. Educação e luta de classes. São Paulo. Cortez, 17º edição, 2000.

SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia. 41ª edição, Autores Associados, São Paulo, 2009.


[1]  É importante destacar neste momento que cabe aos movimentos sociais, principalmente o movimento sindical docente, a construção de um projeto contra-hegemônico de educação, que atenda de fato os interesses da classe trabalhadora, que tem na escola pública a sua escola. A luta passa a ser também a disputa da consciência da classe trabalhadora, e por isso é necessário a embate contra a ideologia hegemônica da educação imposta pelo capital.


TEXTO - 02


A educação na sociedade de classes:
possibilidades e limites

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Paulino José Orso[1]


Em um artigo denominado "As possibilidades e os limites da educação"[2], publicado por ocasião das comemorações dos 130 anos da Comuna de Paris de 1871, realizadas em 2001, concluía o mesmo afirmando que quem acredita na educação luta para transformar a sociedade. Pois bem, neste partimos desta premissa para tratarmos da educação na sociedade de classes.
Muito se tem discutido sobre o papel da educação na sociedade, se ela apenas reproduz a sociedade em que está inserida ou se ela é ou pode ser revolucionária a ponto de transformar toda a sociedade.
Entretanto, muitos, em vez de analisa-Ia e compreendê-la de acordo com a categoria da totalidade, caem na perspectiva positivista e simplesmente deslocam-na do conjunto das relações sociais de produção, embrenham-se pelo idealismo e apresentam-na como se fosse capaz de promover o desenvolvimento econômico, garantir o bem estar social e conduzir a todos à felicidade; fazem dela a responsável pelo sucesso ou fracasso de cada um. Analisando-a de forma abstrata, deslocada das contradições e dos antagonismos de classes, atribuem a ela um caráter redentor. Entretanto, existem "n" formas de educação; não é possível para falar de educação abstratamente, nem desconsiderando a história. Além disso, as finalidades com que se educa também não são as mesmas em todas as épocas, em todos os lugares e em todas as sociedades. Simplificando, poder-se-ia dividir a educação em dois tipos: a formal e a informal. A primeira refere-se àquela ministrada em sala de aula, com professores, programas, conteúdos, objetivos definidos, que é realizada de forma sistemática. A segunda diz respeito à realizada cotidianamente, baseada nos costumes, nas leis, nas tradições, nas lutas do dia-a-dia, nas mobilizações, na aprendizagem durante a vida. Ambas são formas de educação e variam de acordo com a sociedade, com as relações de força envolvidas, com a época, com o estágio de desenvolvimento e o lugar em que ocorrem. Mas, afinal de contas, o que é ou em que consiste a educação? Se pudéssemos abarcá-las numa mesma definição, poderia se dizer que a educação é a forma como a própria sociedade prepara seus membros para viverem nela mesma.
Ora, se a educação é a forma como a sociedade educa seus membros para viverem nela mesma, então, para compreender a educação precisamos compreender a sociedade. Assim, na me-dida em que a compreendermos, também entenderemos aquela. Partindo do princípio de que, após o surgimento da propriedade privada dos meios de produção, a história da humanidade tem sido a história das lutas de classes[3] e que atualmente vivemos no modo de produção capitalista, baseado na extração da mais-valia, na exploração, na competição e na concorrência, a educação, submetendo-se às determinações da base material, no geral acaba contribuindo para a reprodução desta sociedade, pois, "na produção social de sua vida, os homens contraem determinadas relações de produção necessárias e independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a uma determinada fase de desenvolvimento das forças produtivas materiais"[4]. Ou seja, a educação tende a "refletir" a sociedade que a produz, pois, expressa o nível de compreensão dos que a fazem, permitida pela sociedade de cada época, de acordo com a etapa de desenvolvimento e das relações sociais.
Quanto à educação formal, ela geralmente se parece mais com uma forma de adestramento, disciplinarização, treinamento e docilização dos indivíduos, do que como meio de transformação e de revolução social. Mesmo quando tem a preocupação de ser crítica, de subverter a ordem acadêmica e de questionar o sistema vigente, o que é um tanto raro e incomum nos tempos atuais, é envolvida por um amplo aparato disciplinar e burocrático deixando pouco espaço para a flexibilidade e para a realização de experiências alternativas. Além disso, na maioria das vezes, os conteúdos estão mais voltados para ensinar que "a Eva viu a uva", ou seja, conteúdos abstratos, do que para compreender a vida concreta, isto é, a matemática da fome, o português da violência, a geografia e a história da exploração e dos problemas sociais, a ciência da história da vida real dos homens e voltam-se mais para a adaptação, para a alienação e para o conformismo do aluno ao meio do que para desmistificar, para questionar as condições de vida e o modo de produção capitalista.
Esta forma de educação corresponde à essa sociedade, que tem na alienação da força de trabalho e, conseqüentemente, na alienação da consciência um meio de se reproduzir e se perpetuar. E não poderia admitir outra, pois se o fizesse, corresponderia a outra sociedade e não à de classes. Como ela não é constituída por um bloco monolítico, também é permeada por contradições e, eventualmente, até pode permitir a realização de algumas experiências diferentes. Todavia, no geral, predomina um tipo de educação abstrata, necessária à essa sociedade, pois, sendo o determinante maior a base material, da condiciona a consciência estabelecendo-se assim um tipo de educação correspondente a ela. Ou seja, urna educação voltada para estimular o individualismo, para fomentar a competição, para enaltecer a concorrência, para premiar pela produtividade e punir pelos resultados não desejados, permitindo, assim, selecionar os mais aptos e mais adaptados, de acordo com os valores vigentes nessa sociedade — uma educação para a subserviência.
Ao lado desta, na América Latina, têm surgido inúmeras formas de educação popular; umas de forma institucionalizadas outras não. No Brasil, por exemplo, tivemos a experiência realizada por Paulo Freire, em que o aluno, ao mesmo tempo que aprendia a ler e escrever, também era levado a ler, compreender e interpretar o mundo e a sociedade em que vivia. Todavia, a ditadura militar se encarregou de esmagar a experiência e exilar seu idealizador. Em substituição a esse método, implantaram o Movimento Brasileiro de Alfabetização — Mobral, que visava eliminar um determinado conteúdo político e ideológico e substituí-lo por outro, por uma educação moral e cívica, adequada ao militarismo  desenvolvimentista da época.
Mas, se a educação está mais voltada para a adaptação do indivíduo ao meio e se este se constitui na sociedade capitalista em que um homem explora e domina o outro, porque se preocupar em alfabetizar e educar milhões de seres humanos que não sabem ler e escrever? Nossa sociedade é uma sociedade gráfica, isto é, baseada na escrita. Saber ler e escrever significa ter acesso a um mínimo de sociabilidade, ter um mínimo de autonomia individual. Entretanto, a escrita foi inventada há mais de 6.500 anos e um bilhão de pessoas ainda não sabe ler e escrever. No Brasil, por exemplo, ainda temos cerca de 18 a 20 milhões de analfabetos, sem contar os analfabetos funcionais, que mal ou apenas sabem ler e escrever. Portanto, alfabetizar e possibilitar o acesso ao conhecimento formal, não significa fazer nenhuma grande revolução social. Mas, pelo menos, significa permitir que a pessoa saia do estado vegetativo e conquiste um mínimo de autonomia e independência perante o mundo em que vive, ainda que isto seja insuficiente para que realmente seja um homem livre e viva com um mínimo de dignidade.
Mas, mesmo nessa sociedade capitalista, é possível garantir que todas as pessoas tenham acesso a um mínimo de educação formal ou até mesmo à escola pública e gratuita? Para a sociedade capitalista, em sua forma pública ou privada, em princípio não há nenhum problema em oferecer educação para todos. Aliás, paulatinamente vemos o acesso à escola se popularizar cada vez mais, a ponto de que, mais dia menos dia, ela até possa ser universalizada.
No campo da educação, nesse momento também vemos a iniciativa privada avançar a passos largos. Contudo, é possível que em algum momento, de acordo com o grau de exigência social, a chamada educação pública possa vir a ser ofertada a todos (tese esta um tanto utópica, mas perfeitamente possível). Se ela preservar, não questionar e não pôr em risco a propriedade privada, se houver condições econômicas suficiente para bancá-la, não há nenhum problema em universalizá-la. Entretanto, sabemos que a extensão da educação a mais ou menos pessoas, dependerá da pressão da sociedade, da exigência social e das necessidades do capital em cada época. Por isso, ainda que em determinado momento existam as condições materiais necessárias para possibilitá-la a todos, poderá não ser estendida ou somente será oportunizada quando existir pressão popular suficientemente forte e capaz de transformar o potencial em algo real. Pois, ela pode ser utilizada como uma moeda de negociação e canalização das lutas sociais. Por outro lado, se ela for paga, o problema será menor ainda. Pois, até servirá como um campo de extensão e de ampliação do capital em um momento de crise de acumulação, por exemplo.
No momento em que o capital passa por uma profunda cri-se de superprodução, em que o capital encontra-se estrangulado, existem duas saídas para ela. Urna está na imposição da flexibilização e liberalização das fronteiras, no rompimento das barreiras e na desburocratização para abrir novos espaços e campos para o seu desenvolvimento. A outra está na necessidade de queimar e destruir forças produtivas, por exemplo, por meio da guerra, sob pena de provocar seu próprio aniquilamento. Então, a desestatização e a privatização transformam-se em alternativas que permitem desafogar, ao menos temporariamente, a crise do capital e garantir um novo, porém pequeno, período de desenvolvimento, até gerar uma nova crise.
O sucateamento da escola pública e a expansão da escola privada inserem-se dentro das necessidades do capital, uma vez que, "os processos educacionais e os processos sociais mais abrangentes de reprodução estão intimamente ligados"[5]. Assim, para compreender as características da escola, para entender o processo de expansão e de retração da escola pública, bem como, da expansão da escola particular é preciso entender o processo de desenvolvimento do capital e seus ciclos de desenvolvimento e de crise.
Portanto, é um equívoco centrar a discussão educacional numa abstração em, se ela é ou não é reprodutora, se ela é ou não é transformadora, se ela é ou pode ser revolucionária. Como a sociedade não é homogênea, como está permeada de contradições, de lutas e antagonismos de classes, a educação se transforma de acordo com movimento da sociedade, que ao se transformar e ser transformada, também possibilita uma educação de tipo diferente, adequada à nova realidade. Assim, em cada época e em cada sociedade, a educação "reflete" as condições do desenvolvimento social, o nível de desenvolvimento das forças produtivas e a relação de forças entre as classes envolvidas.
Desse modo, falar da educação numa sociedade de classes, numa sociedade capitalista, significa dizer que ela está voltada à conservação do status quo e à legitimação das estruturas sociais vigentes. Se quisermos ter outro tipo de educação não nos resta outra alternativa senão lutar pela transformação da sociedade.
A sociedade centralizada, hierárquica, especializada, elitista e seletiva como está organizada atualmente, bloqueia, cerceia e inibe as iniciativas que possam desafiá-la. Nesse sentido, como diz Harper,

é certo, porém, que estas experiências, ao aproveitarem as brechas existentes e ao utilizarem os espaços disponíveis, esgotam o campo do possível no interior do sistema escolar. Os educadores, os pais de alunos e os estudantes que conseguirem criar esses espaços de liberdade e de experimentação fazem de sua prática educativa uma negação viva do modo de organização social dominante e do tipo de escola seletiva e elitista que lhe é funcional.

            O bom profissional da educação, ao esmerar-se na realização de seu trabalho, também perceberá os limites dele e de sua ação no interior da sala de aula; perceberá que sua luta não poderá circunscrever-se à escola, apesar de ser este o local de seu trabalho profissional.
            Entretanto, a transformação da sociedade depende do processo de desenvolvimento das forças produtivas, das relações sociais e (Ias contradições gestadas no seu interior. Pois, como diz Marx:

(...) ao chegar a uma determinada fase de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade se chocam com as relações de produção existentes (...) De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações se convertem em obstáculosa elas. E se abre, assim, uma época de revolução social. Ao mudar a base econômica, revoluciona-se, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura erigida sobre ela.[6]

            Todavia, se a educação não é propriamente reprodutora nem redentora, também não é revolucionária. Ela expressa as contradições e a própria sociedade em que está inserida. A sociedade estabelece os limites e as possibilidades da educação; estabelece sua qualidade e sua quantidade, sua forma e seu conteúdo. Isto significa que lutar somente pela educação, é lutar em vão; que é necessário lutar pela educação lutando simultaneamente pela transformação da sociedade. Pois, "a exigência de abandonar as ilusões sobre sua condição é a exigência de abandonar uma condição que necessita de ilusões".[7]
            Mas, a superação das ilusões, bem como daquilo que as produz, não ocorre por um ímpeto voluntarista. Entretanto, nessas condições o acesso ao conhecimento científico, que se identifica com o domínio da organização e do funcionamento da realidade, aparece como uma condição sine qua non à transformação, mas não suficiente por si só. O acirramento das contradições e dos antagonismos sociais desencadeiam as condições para a mobilização social. Até não se apresentar uma situação limite em que esteja em jogo a sobrevivência do homem, imperará o individualismo, a competição, a concorrência, a busca de saída de tipo personalista e, no geral, de cada um a suas custas. Se a base material exige o estabelecimento de relações necessárias e independentes da vontade, somente no momento em que urna situação nova revelar a insuficiência das relações anteriores e exigir outras novas, elas serão desencadeadas.
            De que adianta "dizer" que é preciso mudar de mentalidade, que é preciso deixar de ser individualista, que é preciso ser solidário, que é preciso pensar no outro, que é preciso ser fraterno, que é preciso deixar o egoísmo de lado, se isso não passar de palavras de efeito e de tipo moralistas? Por isso, é necessário considerar o modo como a sociedade está organizada para garantir a sobrevivência. As pessoas até podem não querer explorar e dominar os outros; podem querer ser fraternas e solidárias, mas são forçadas a fazer o contrário devido ao modo de produção dominante.
            Portanto, não basta dizer que a educação é mediadora. Afinal, ela é mediadora para "n" coisas. Assim como é inócuo pensar que basta diferenciar educação de formação; que em vez de aluno (sem luz própria) os denominemos de educandos; que bas-ta estabelecer novos "paradigmas" de produção do conhecimento, pois impõe-se a mesma observação feita por Marx na Tese 3 sobre Feuerbach, em que afirmava:

A doutrina materialista da transformação das circunstâncias e da educação esquece que as circunstâncias têm de ser transformadas pelos homens e que o próprio educador tem de ser educado. (...) A coincidência da mudança das circunstâncias e da atividade humana ou autotransformação só pode ser tomada e racionalmente entendida como práxis revolucionária.[8]

            Ou seja, Marx reforça a tese de que, quem de fato educa o homem é a sociedade, tanto pelas pessoas que a fazem quanto pelas condições em que vivem. A educação corresponde ao nível de desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção de cada sociedade, em cada época. Assim, a educação se transforma ou é transformada à medida em que também se transforma a sociedade, em que a luta se acirra. Novas relações de produção exigem novas relações sociais. Estas suscitam novas representações ideais, novas teorias, novos conceitos, novas idéias, condição para novas ações e novas práticas, para mudanças que possam ir além das do tipo estímulo resposta. Dessa forma, impõe-se mais do que nunca, conhecer cada vez melhor a sociedade, conhecer como ela se movimenta, como se transforma, para poder intervir nela nos momentos adequados. A verdadeira aprendizagem se dá na luta concreta, na percepção de que a sociedade de classes e a sociedade capitalista é inviável ao ser humano; na destruição das promessas e ilusões burguesas. Isso ocorre com as transformações sociais, que vão provocando novas relações e que, por sua vez, vão minando o sistema e desencadeando novas formas de se organizar e se viver socialmente. As formas de organização baseadas no individualismo e na competitividade, vão sendo superadas por formas de organização baseadas no coletivo e na cooperação, na negação do individualismo; vão rompendo com o personalismo e com a competitividade e levam à descoberta da necessidade de luta, de cooperação e do outro.
            Como se pode perceber, nesta sociedade, a educação, ainda que seja um espaço de contradição, no geral prepara o indivíduo para o mercado, para explorar ou para ser explorado, ou seja, para a adaptação e reprodução das condições vigentes. Entretanto, o que é que de fato importa? Importa é que a classe trabalhadora se liberte, que supere a dominação e conquiste a liberdade, não a ilusória e falsa liberdade burguesa, mas sim a liberdade humana; que construa uma nova humanidade e um novo homem, resultados do fim da propriedade privada e das classes sociais. Num sistema que submete tudo e todos à sua lógica é insuficiente promover reformas pontuais, periféricas e marginais. Mas, como conseguir isso? Vou citar três exemplos, dentre tantos, que permitem perceber que é possível construir uma nova humanidade.
            O primeiro é o exemplo da Comuna de Paris, que em 1871 demonstrou que se quisermos construir uma nova humanidade e ter uma nova educação que permita que o homem se desenvolva integralmente, não basta promover reformas, é preciso acabar com o modo de produção capitalista, com a sociedade de classes e com o Estado. A comuna demonstrou não apenas a possibilidade, mas a necessidade da unidade de classe dos trabalhadores, condição para o enfrentamento da classe dominante.
            O segundo é o exemplo das Madres da Praça de Maio da Argentina. As Madres que tiveram seus filhos perseguidos, presos, torturados, exilados e mortos por lutar e defender uma nova sociedade, inicialmente, passaram a procurar e buscar por seus filhos cada uma individualmente. Depois, os desafios fizeram com que elas se unissem e percebessem que o problema não era individual; perceber que outras mães também tinham filhos seqüestrados e mortos. Então passaram a se organizar e a lutar coletivamente. Na luta, perceberam que a comissão de direitos humanos, a igreja, os juízes, os políticos, além de não resolver seus problemas, de não trazer seus filhos de volta, eram cúmplices dos desaparecimentos e das atrocidades. Por isso, perceberam que era inútil recorrer a eles. Na luta compreenderam que a causa dos problemas está na sociedade de classes, na sociedade capitalista e que a única saída que havia para superá-los era lutar pela transformação radical da sociedade. Ou seja, de donas de casa, a luta levou as Madres a superar suas diferenças individuais, seus interesses pessoais e imediatos, e fez com que percebessem que a única condição dos fracos se fortalecerem é na unidade. Com isso, perceberam a necessidade de se transformarem em revolucionárias.
            O terceiro exemplo é o do MST — Movimento dos Trabalha-dores Sem Terra. Os sem-terra também cansaram da enganação, das ilusões e das promessas burguesas; cansaram das promessas de liberdade e de democracia; cansaram das promessas de que, "primeiro é preciso fazer crescer o bolo para depois dividi-lo"; de que primeiro é preciso acabar com a inflação, para depois promover a distribuição de renda; de que é preciso fazer a reforma agrária dentro da lei, dentro da negociação. Todas essas estratégias burguesas revelaram-se ilusões. Entretanto, disso tudo resultou a aprendizagem de que, só pela organização e pela luta o povo consegue conquistar seus "direitos"; só o povo organizado pode revolucionar e transformar a sociedade em que vive. Como diz Marx, a liberação dos trabalhadores será uma conquista dos próprios trabalhadores ou não será de mais ninguém. Os sem-terra também perceberam que não basta conquistar um pedaço de terra, pois o sistema produz um número infinitamente maior de sem-terra do que os que conseguem conquistar um pedaço de chão. Então, de uma luta voltada apenas para a conquista da terra individualmente, perceberam que mesmo que a luta fosse apenas por ela, no plano individual seria muito difícil de conquistar. Dessa aprendizagem resultou a compreensão de que a luta deve-ria ser coletiva, pois os seus problemas eram comuns. Além disso, entenderam que se a luta, mesmo sendo coletiva, tivesse seu fim apenas na conquista da terra e não como parte de um processo mais amplo, a superação do modo de produção capitalista, mais dia, menos dia, os problemas seus ou de outros voltariam a ser os mesmos.
            Se quiséssemos enumerar teríamos mais uma série de exemplos semelhantes a estes para citar, nos quais se revela que a verdadeira aprendizagem ocorre na luta. Mas, penso que estes já são suficientes para ajudar Os educadores a percebem que também precisam aprender com a luta e com a história. Basta olhar um pouco para a história para perceber as mentiras seculares propagadas pela burguesia e deixar de acreditar em suas promessas de progresso, de bem estar, de redenção pela educação. Portanto, é preciso perder a ilusão, deixar de ser ingênuo. É preciso partir para a luta, tendo como referência a identidade de classe. Como diz Marx, ou se resolvem os problemas na prática ou não se resolve.

As armas da crítica não podem, de fato, substituir a crítica das armas; a força material tem de ser deposta pela força material, mas a teoria também se converte em força material uma vez que se apossa dos homens. A teoria é capaz de prender os homens desde que demonstre sua verdadeira face ao homem, desde quese torne radical. Ser radical é atacar o problema em suas raízes. Para o homem, porém, a raiz é o próprio homem.[9]

            Mas, se é a sociedade que educa, qual o papel que cabe ao professor? Não nos esqueçamos que ele também faz parte da sociedade. E, nesse sentido, tem uma tarefa importante para cumprir.
            O professor realiza um trabalho social específico, não melhor, nem mais nobre ou superior, mas sim diferente dos demais trabalhadores; o professor não é um sacerdote. Se não fosse professor, como um trabalhador que precisa vender sua força de trabalho para poder sobreviver, possivelmente estaria realizando um outro tipo de trabalho qualquer e vendendo sua força como padeiro, marceneiro, agricultor, confeiteiro, vendedor, pedreiro, coveiro, escriturário, motorista etc. — estaria educando e sendo educado em outro local. Ou seja, seria membro da classe trabalhadora, submetido à mesma lógica do modo de produção capitalista como os demais trabalhadores, mas exercendo uma outra função social. Muitas vezes, pelo fato de o professor trabalhar com as idéias, tem a impressão de que não é trabalhador, de que não pertence à mesma classe dos demais. Daí a importância de se reconhecer como trabalhador, como membro da mesma classe, com a "missão" de, por intermédio do trabalho que realiza, contribuir para a superação de sua própria condição social.
            Enfim, o professor é um trabalhador que se especializou na arte de ensinar/aprender e, assim corno os demais trabalha-dores, deve realizar seu trabalho da melhor maneira possível. Para isso, não pode se dar o luxo de fazê-lo de qualquer jeito, confiar apenas na sua experiência, nos seus anos de trabalho, na sua própria sorte. Como profissionais da educação realizam uni tipo de trabalho de certa forma privilegiado que, ao mesmo tempo, permite que os educandos tenham acesso ao saber científico historicamente acumulado e fazer a crítica radical do conhecimento e da própria sociedade que o produz. Dependendo da forma como for realizado, o trabalho pode revelar a própria condição existencial dos trabalhadores em educação e também dos demais trabalhadores, possibilitando identificar-se como pertencentes a uma classe, à classe trabalhadora. O reconhecimento dos trabalhadores em geral e dos da educação como classe e o reconhecimento das condições a que esta classe está submetida, exige que, por meio do trabalho que realizam, contribuam para a superação de sua condição. No mínimo seria um contra-senso os trabalhadores da educação fazerem de conta que esta é uma instância neutra e limitarem-se à sua própria reprodução. Quando esta compreensão se generalizar, quando a classe trabalhadora compreender isto, quando sua consciência for tal que não mais aceite sua condição de explorado e de classe, ela própria se transformará na força material que deporá as estruturas que a produzem e construirá as condições para humanização do homem. Cabe ao professor, por meio do trabalho que realiza, portanto, ajudar a preparar o alunos para uma nova sociedade; a ajudar ao aluno transitar do estado de consciência alienada para a superação de seu estado de classe; servir de ponte entre a realidade atual e a que se quer construir.
            Os três exemplos acima, apesar de reforçarem o papel da luta organizada para educar e transformar a sociedade não desprezam a educação escolarizada, mesmo que dentro de suas limitadas possibilidades, dado o caráter dependente em relação às demais estruturas sociais. Tanto a Comuna de Paris, quanto as Madres da Praça de Maio como os sem-terra trataram de construir suas próprias escolas e elaborar suas próprias propostas educacionais, adequando-as, porém, às suas concepções e aos seus projetos de mundo e de sociedade.
            Ou nos organizamos e lutamos pela transformação da sociedade ou então não teremos uma educação de nova modalidade nem construiremos um homem novo.




Referências bibliográficas

MARX, K ENGELS, F. "Manifesto do Partido Comunista". In: Revista de Estudos Avançados da USE. São Paulo: Vol. 12, n° 34, set./dez., 1998.

MARX, K. Prefácio à "Contribuição à crítica da Economia Política". In: MARX, K & ENGELS, E Obras Escolhidas. São Paulo: Alfa-Omega, s/d.

__________. "Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel". In: MARX, K. A questão judaica. 5a edição, São Paulo: Centauro, 2000.

__________. "Teses sobre Feuerbach". In: A ideologia alemã. Lis-boa: edições avante, 1981, p. 104.

ORSO, José Paulino. "As possibilidades e os limites da educação". In: ORSO, José Paulino. A Comuna de Paris de 1871: história e atualidade. São Paulo: Editora Ícone, 2002.


Referência deste texto e do livro

ORSO, Paulino José. A educação na sociedade de classes: possibilidades e limites. In Educação e luta de classes. São Paulo: Expressão Popular, 2008.

ORSO, Paulino José; GONÇALVES, Sebastião Rodrigues; MATTOS, Valci Maria (org.). Educação e luta de classes. São Paulo: Expressão Popular, 2008.


[1] Docente da Universidade Estadual do Oeste do Paraná — Unioeste —, mem-bro do Espaço Marx — SP, líder do Grupo de Pesquisa em História, Socie-dade e Educação — GT da Região Oeste do Paraná — HISTEDOPR. E-mail: paulinorso@uol.com.br
[2] Cf. ORSO, J. "As possibilidades e os limites da educação", pp. 89-102.
[3] MARX, K e ENGELS, F. "Manifesto do Partido Comunista", p. 7.
[4] MARX, K. Prefácio à "Contribuição à critica da Economia Política", p. 301.
[5] MÉSZÁROS, I. Educação para além do capital.
[6] MARX, K. Prefácio à "Contribuição à Crítica da Economia Política", p. 301.
[7] MARX, K. "Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel", p. 86.
[8] MARX, K. "Teses sobre Feuerbach", p. 104.
[9] MARX, K. "Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel", p. 94



Texto introdutório do livro "Educação, Sujeito e História"

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Antonio Joaquim Severino 

Desde suas origens gregas, a tradição filosófica e cultural do Ocidente sempre priorizou a teoria ao se referir à significação dos fenômenos e eventos da realidade. Teoria entendida e exercida como simples jogo combinatório de idéias, dimensão privilegiada e prestigiada como uma esfera autônoma, desenvolvendo-se no mundo inteligível, como se fosse uma atividade situada numa dimensão qualitativamente superior às atividades práticas desenvolvidas no mundo sensível, marcadas pela contingência. Antropologicamente falando, o pensar humano surge como uma experiência de subjetividade, um exercício autônomo frente à vida prática. Mais ainda, como se antecedesse a ação . 

Ao longo de sua experiência de quase três mil anos, de tanto privilegiar a atividade teórica, a filosofia ocidental acabou atribuindo-lhe muita autonomia na elaboração de seus produtos. Isso ocorreu porque o processo da subjetividade era visto como uma contemplação mental dos objetos. Daí a prevalência das idéias em relação a objetos e ações práticas. Por isso, apesar de a manifestação da educação ocorrer no plano concreto, tendeu-se a explicá-la a partir das idéias mediante as quais era representada. 

De modo especial diante de fenômenos como a educação, constata-se que seu significado (assumido como conteúdo mental e representação simbólica transposta da contemplação do real) é o resultado de um complexo processo de construção, realizado através da atividade prática, da qual a teoria é apenas uma dimensão. É a prática que constrói a educação assim como toda expressão da existência humana. Toda explicação teórica deve ter a condição prática como referência fundamental. 

Ao agir de modo prático para educar, o educador constrói a educação em sua condição real, compartilhando-a com os educandos. Não é só compartilhar através de um olhar intelectual comum, mas de uma incorporação mediante a prática. Como mediação privilegiada da educação, o ensino não passa apenas informações, mas, sobretudo um procedimento. Mais que um discurso em sentido estrito, as práticas do cotidiano educacional formaram um ethos, um modo de ser e de viver. 

No entanto, a prática humana é opaca. Ela não se auto-esclarece apenas por efetivar-se. Sendo humana, ela é intencional e se vincula a fins, muito além da eficácia mecânica. Ao ganhar flexibilidade, não se submete mais à determinação de mecanismos rígidos dos instintos. Mas a intencionalidade (significação conceitual e/ou valorativa que orienta nosso agir) que impregna a prática humana nem sempre é transparente; o mais das vezes, ela se camufla sob disfarces ideológicos ou outras formas de alienação de tal modo que o sujeito, em sua cotidianidade, nem sempre tem plena consciência do sentido de suas ações. Nosso agir social, embora não seja puro instinto, é ambíguo quanto a sua gênese e fontes intencionalizantes. Suas fontes energéticas encontram-se num emaranhado complexo de vetores orgânicos, psíquicos, sociais e culturais que se amalgamam no âmbito de nossa subjetividade e quase nunca no plano consciente. Na maioria das vezes, manifestam-se na homogeneidade do senso comum como consciência iludida e ingênua. 

Não obstante, a prática humana precisa da teoria para se expressar significativamente. Ela seria muda se não se exprimisse pelo pensamento e pelo conceito. O seu sentido não se revela mecanicamente, mas só se dá a um sujeito que seja capaz de lê-lo. A teoria, em sentido amplo, é o esforço de realizar essa leitura e explicitar o sentido imanente à prática. É o meio possível para a leitura da realidade, para que ela possua algum sentido. Assim, as práticas concretas são a base do fenômeno educativo e lhe dão realidade; mas a teoria dá configuração ao objeto como tal, enquanto educação. A prática humana, em que pese a opacidade de sua gênese, só pode ser esclarecida e significada pela lucidez da consciência e pela expressão teórica da subjetividade. Não há outro caminho. 

Portanto, a atividade teórica ganha sentido na medida em que se faz como intencionalização da prática, que opera quando efetiva o esclarecimento. No âmbito educacional, a teoria tem por finalidade esclarecer os elementos envolvidos na prática, dando-lhes sentido norteador e referência do processo, evitando que a intervenção educativa se tome puramente mecânica. 

A intencionalidade supera a transitividade da prática. Esta, por ser dependente das mediações objetivas, corre o risco de se efetivar de modo automático mediante o jogo das forças transitivas da naturalidade dos mundos físico-biológico ou sócio-cultural. Daí a exigência da intervenção significadora da prática simbólica da consciência cognoscitiva e avaliativa, a qual instaurará o sentido da prática. Por isso, a educação só é humanizadora se for intencionalizada pelo conhecimento e pela valoração, desde que referidos à significação apreendida na existência histórico-social. 

Ciência e filosofia, as duas modalidades de conhecimento mais desenvolvidas na cultura ocidental, participam da construção do conceito da educação, pois elaboram sua intencionalidade e significação. Trata-se do investimento global da atividade cognoscitiva com vistas a estabelecer as referências norteadoras da prática educacional, tal como planejada e executada pelas sociedades históricas. 

Atribuir hoje essa responsabilidade à filosofia exige que, à luz do seu desenvolvimento, se defenda o papel intencionalizador da razão. Caso esta seja assumida como o núcleo do sujeito capaz de construir, mediante diferentes modalidades de conhecimento, o significado conceitual das coisas, ao longo do tempo histórico em que se realiza a cultura, tenha-se claro que não se trata de uma trajetória harmoniosa nem conduzida pela força transcendental de uma necessidade determinística. É, sim, um processo sinuoso, crivado de obstáculos e com resultados marcados pela ambigüidade. Uma situação complexa na ciência se toma muito mais delicada no caso da filosofia, solo da tarefa mais crucial: elucidar o sentido da existência. O ato de conhecer é comparável à situação de um piloto de avião voando em condições precárias. Quando a visibilidade é pouca, ele pode conduzir a aeronave por meio de instrumentos, sem sair da rota nem correr risco de erros graves. Mas, quando se trata de guiar a sua vida, dando-lhe um norte a partir da intencionalização de sua ação prática, o sujeito nunca se encontra em “céu de brigadeiro” e seu vôo não é feito à plena luz do mundo das idéias, nem automaticamente. O vôo do espírito se faz em meio à neblina, nunca escapa às brumas! O erro do Iluminismo foi considerar que a razão eliminaria todo traço de trevas. Clareia, sim, mas é uma claridade refratada na neblina e ofuscada.

Platão simplificou nossa condição em sua Alegoria da Caverna. É verdade que, pelo exercício do conhecimento intelectual, o espírito sai da caverna. Mas fora dela não está sob plena luminosidade! No lado de fora, a luz do Sol se mistura às brumas. 

Assim, a transparência dos atos relacionados à subjetividade não é absoluta. Merleau-Ponty tem razão ao considerar que o conhecimento humano, mesmo o mais lúcido, nunca consegue eliminar certa ambigüidade. Essa convicção é uma marca forte em quase todas as expressões da filosofia contemporânea, chegando até a uma postura cética e pessimista. Esta se contrapõe ao otimismo do pensar iluminista e procura legitimar-se como recusa da modernidade e afirmação da pós-modernidade. 

Paira no ar aguda consciência do drama da contingência humana e das limitações de seu poder mais específico: a utilização da subjetividade racional.  Ao longo de sua história como construtor do conhecimento, o sujeito não transita apenas por caminhos suaves, balizados por conquistas e consolidações, mas também por fracassos. O mais terrível é que o inimigo maior da razão não se encontra fora dela. Ao longo de sua trajetória, desde quando foi observada, a racionalidade humana encontra o maior obstáculo em seu interior, sendo freqüentemente derrotada por si mesma numa implacável luta contra a desrazão. 

Por isso, a construção do conhecimento - que deveria intencionalizar a existência humana na dimensão teórica e nas aplicações éticas, políticas ou pedagógicas - é atravessada por percalços, num caminhar repleto de promessas e de tantas desilusões. O absurdo sempre afronta o lógico: isso faz com que muitos, como os filósofos arqueo-genealógicos, afirmem que o desenvolvimento do humano tem história, mas não tem lógica. 

A História nos últimos milênios apóia tal ceticismo. Apesar dos investimentos e avanços da intervenção racional sobre as mediações do destino da espécie, a cultura contemporânea mostra um saldo em que a desrazão parece vencer; a humanidade não consegue conduzir sua existência referindo-se a significações que correspondam a uma maior humanização. O espetáculo que a sociedade se oferece neste início de terceiro milênio ocidental é uma exposição em carne viva da derrota do senso racional frente a desmandos de toda ordem. A barbárie está levando a melhor sobre a civilização, uma possível organização racional da sociedade. Quando a economia se guia sobretudo pela insondável “mão invisível do mercado”, percebe-se a prevalência da irracionalidade. Como é possível a razão destruir sua única referência cabível? De que valeria esse maravilhoso equipamento da subjetividade se acabássemos desfigurados por ele?

A convivência dos homens entre si e com a natureza mostra-se insustentável e ameaça acuar o espaço pessoal de existência digna. Os indícios de uma androidização da espécie aumentou nas últimas eras, ao mesmo tempo que os processos da produção e distribuição de bens atiram segmentos enormes no limbo da exclusão, condenando-os à inanição. Não mais se verificam circunstâncias conjunturais, mas processos estruturais, nos quais alguns setores jogam com plenos poderes e fria lucidez. Nessa entropia, a civilização se tomou barbárie e a lógica racional se fez irracional idade. Ser racional é a última característica da lógica do mercado! 

Os homens dispõem apenas da razão para enfrentar e reorientar essa situação de acordo com alguma intencionalidade. Essa razão, que responde pela enlouquecida corrida rumo à barbárie total, é a única ferramenta da espécie para construir a civilização. Só o conhecimento poderá esclarecer-nos e apresentar significações para redirecionar nossa prática, mediadora da existência, potencializando as dimensões humanizadoras. 

A educação é radicalmente vinculada ao conhecimento e se toma sua mediadora para intencionalizar a prática humana. Daí sua importância para a existência e a imperiosa necessidade de se transformar a estratégia pedagógica em esforço de universalizar o poder intencionalizador do conhecimento, de modo que todos os sujeitos se dêem conta dos sentidos que redicionariam sua ação na linha de maior humanização. 

Sendo a única via para significar a ação construtora da História, o conhecimento se firma como índice de transcendência no seio de sua total imanência. O modo de existir do homem, imerso nas condições objetivas, impele-o a ultrapassar essas condições, na medida em que as nomeia, re-significa e articula no desencadeamento e execução de sua ação prática. 

Assim, toda explicação formulada pela subjetividade racional esbarra na radical contingência do conhecimento, em sua historicidade. A imanência denuncia, como petulância arbitrária, qualquer pretensão ao conhecimento trans-histórico, bem como a verdades definitivas e referências absolutas. 

Essas limitações não eliminam o compromisso de praticar uma “transcendência histórica”, investir na construção de verdades provisórias, explicitar valores para legitimar finalidades datadas participando da construção de sentido. Se ao conhecimento humano é vedado o acesso a qualquer verdade trans-histórica, não lhe é impossível estabelecer saberes históricos como referência para sua prática, definindo rotas em nosso vôo por entre brumas. Tal vôo não só não é impossível, mas é necessário, apesar das limitações. 

A presente reflexão assume essa premissa. A filosofia deve ser praticada oportuna e inoportunamente, ciente de seus condicionamentos. No caso da Filosofia da Educação, compromete-se na elucidação do sentido da estratégia pedagógica do conhecimento. 

Pretendo explicitar o papel da filosofia no processo de educação, conceitualmente e em seu pleno significado, bem como o sentido de uma Filosofia da Educação e sua contribuição ao compreender o significado do processo educacional. É sob a modalidade filosófica que o conhecimento realiza essa tarefa. 

Referencia bibliográfica 

SEVERINO, Antônio Joaquim. Educação, sujeito e história. São Paulo: Olho d’Água, 2001, p. 7 – 13.





A CONTRIBUIÇÃO DA FILOSOFIA PARA A EDUCAÇÃO

Antônio Joaquim Severino'

Introdução

No contexto da história da cultura ocidental, é fácil observar que educação e filosofia sempre estiveram juntas e próximas. Pode-se constatar, com efeito, que desde seu surgimento na Grécia clássica, a filosofia se constituiu unida a uma intenção pedagógica, formativa do humano. Ela já nasceu paidéia! Para não citar senão o exemplo de Platão, em momento algum o esforço dialético de esclarecimento que propõe ao candidato a filósofo deixa de ser simultaneamente um esforço pedagógico de aprendizagem. Praticamente todos os textos fundamentais da filosofia clássica implicam, na explicitação de seus conteúdos, uma preocupação com a educação.

Além desse dado intrínseco do conteúdo de seu pensamento, a própria prática dos filósofos, de acordo com os registros históricos disponíveis, eslava intimamente vinculada a uma tarefa educativa, fossem eles sofis-tas ou não, a uma convivência escolar já com características de institucio-nalização.
A verdade é que, em que pese o ainda restrito alcance social da educação. a filosofia surge intrinsecamente ligada a ela, autorizando-nos a consi-derar, sem nenhuma figuração, que o filósofo clássico sempre foi um grande educador.

Desde então, no desenvolvimento histórico-cullural da filosofia ocidental, essa relação foi se estreitando cada vez mais. A filosofia escolástica na Idade Média foi, lileralmene, o suporte fundamental de um método pedagógico responsável pela formação cultural e religiosa das gerações
' Professor Assistente, Doutor da Faculdade de Educacão, da USP
européias que estavam constituindo a nova civilização que nascia sobre os escombros do Império Romano. E que falar então do Renascimento. com seu projeto humanista de cultura, e da Modernidade, com seu projeto iluminista de civilização?

Não foi senão nesta última metade do século vinte que essa relação tendeu a se esmaecer! Parece ser a primeira vez que uma forte tendência da filosofia considera-se desvinculada de qualquer preocupação de natureza pedagógica, vendo-se tão-somente como um exercicio puramente lógico Essa tendência desprendeu-se de suas próprias raízes, que se encon-travam no positivismo, transformando-se numa concepção abrangente. denominada neopositivismo, que passa a considerar a filosofia como tarefa subsidiária da ciência, só podendo legitimar-se em situação de dependência frente ao conhecimento cientifico, o único conhecimento capaz de verdade e o único plausível fundamento da ação. Desde então qualquer critério do agir humano só pode ser técnico, nunca mais ético ou político. Fica assim rompida a unidade do saber.

Mas, na verdade, esse enviesamento da tradição filosófica na contempo-raneidade é ainda parcial, restando válido para as outras tendências igualmente significativas da filosofia atual que os esforços de reflexão filosófica estão profunda e intimamente envolvidos com a tarefa educa-cional. E este envolvimento decorre de uma tríplice vinculação que deli-neia três frentes em que se faz presente a contribuição da filosofia para a educação.

A Educação como Projeto, a Reflexão e a Práxis

A cultura contemporânea, fruto dessa longa trajetória do espirito humano em busca de algum esclarecimento sobre o sentido do mundo, é particu-larmente sensível a sua significativa conquista que é a forma cientifica do conhecimento. Coroamento do projeto iluminista da modernidade, a ciência dominou todos os setores da existência humana nos dias atuais.

impondo-se não só pela sua fecundidade explicativa enquanto teoria, como também pela sua operacionalidade técnica, possibilitando aos ho-mens o domínio e a manipulação do próprio mundo. Assim, também no âmbito da educação, seu impacto foi profundo.

Como qualquer outro setor da fenomenalidade humana, também a educa-ção pode ser reequacionada pelas ciências, particularmente pelas ciên-cias humanas que, graças a seus recursos metodológicos, possibilitam uma nova aproximação do fenômeno educacional. O desenvolvimento das ciências da educação, no rastro das ciências humanas, demonstra o quanto foi profunda a contribuição das mesmas para a elucidação desse fenômeno, bem como para o planejamento da prática pedagógica. É por isso mesmo que muitos se perguntam se além daquilo que nos informam a Biologia, a Psicologia, a Economia, a Sociologia e a História, é cabível esperar contribuições de alguma outra fonte, de algum outro saber que se situe fora desse patamar científico, de um saber de natureza filosófica. Não estariam essas ciências, ao explicitar as leis que regem o fenômeno educacional, viabilizando técnicas bastantes para a condução mais eficaz da prática educacional? Já vimos a resposta que fica implícita nas tendências epistemológicas inspiradas numa perspectiva neopositivista!...

No entanto, é preciso dar-se conta de que, por mais imprescindível e valiosa que seja a contribuição da ciência para o entendimento e para a condução da educação, ela não dispensa a contribuição da filosofia. Alguns aspectos da problemática educacional exigem uma abordagem especificamente filosófica que condiciona inclusive o adequado aproveita-mento da própria contribuição científica. Esses aspectos se relacionam com a própria condição da existência dos sujeitos concernidos pela educa-ção. com o caráter práxico do processo educacional e com a própria produção do conhecimento em sua relação com a educação. Daí as três frentes em que podemos identificar a presença marcante da contri-buição da filosofia.

1. O Sujeito da Educação

Assim, de um ponto de vista mais fundante, pode-se dizer que cabe
à filosofia da educação a construção de uma imagem do homem, enquanto sujeito fundamental da educação. Trata-se do esforço com vista ao delineamento do sentido mais concreto da existência humana. Como tal, a filosolia da educação constitui-se como antropologia filosófica, como tentativa de integração dos conteúdos das ciências humanas, na busca de uma visão integrada do homem.

Nessa tarefa ela é, pois, reflexão eminentemente antropológica e. como tal, põe-se como alicerce fundante de todas as demais tarefas que lhe cabem. Mas não basta enunciar as coisas desta maneira, reiteirando a fórmula universal de que não se pode tratar da educação a nâo ser a partir de uma imagem do homem e da sociedade. A dificuldade está justamente no modo de elaboração dessa imagem. A tradição filosófica ocidental, tanto através de sua perspectiva essencialista como através de sua perspectiva naturalista, não conseguiu dar conta das especifi-cidades das condições do existir humano e acabou por construir. de um lado, uma antropologia metafísica fundamentalmente idealista. com uma imagem universal e abstrata da natureza humana, incapaz de dar conta da imergência do homem no mundo natural e social: de outro lado, uma antropologia de fundo cientificista que insere o homem no fluxo vital da natureza orgânica, fazendo dele um simples prolongamento da mesma, e que se revela incapaz de dar conta da especificidade humana nesse universo de determinismos.

Nos dois casos, como retomaremos mais adiante, a filosofia da educação perde qualquer solidez de seus pontos de apoio Com efeilo. tanto na perspectiva essencialista quanto na perspectiva naturalista, não fica ade-quadamente sustentada a condição básica da existencialidade humana. que é a sua profunda e radical historicidade, a ser entendida como a intersecção da espacialidade com a temporalidade do existir real dos seres humanos, ou seja, a intersecção do social com o histórico. O que se quer dizer com isso é que o ser dos homens só pode ser apreendido em suas mediações históricas e sociais concretas de existência. Só com base nessas condições reais de existência é que se pode legitimar o esforço sistemático da filosofia em construir uma imagem consistente do humano.

Podemos usar a própria imagem do tempo e do espaço em nossa percep ção. para um melhor esclarecimento da questão. Assim como, formal mente. o espaço e o tempo são as coordenadas da realidade do mundo natural, tal qual é dado em nossa percepção, pode-se dizer, por analogia. que o social e o histórico são as coordenadas da existência humana. Por sua vez. o educacional, como aliás o politico, constitui uma tentativa de intencionalização do existir social no tempo histórico. A educação é. com efeito, instauração de um projeto, ou seja, prática concreta com vista a uma finalidade que dá sentido ã existência cultural da sociedade histórica. ',

Os homens envolvidos na esfera do educacional — sujeitos que se edu-cam e que buscam educar — não podem ser reduzidos a modelos abstra-tamente concebidos de uma natureza humana", modelo universal ideali-zado. como também não se reduzem a uma "máquina natural", prolonga-mento orgânico da natureza biológica. Seres de carências múltiplas, como que se desdobram num projeto, pré-definem-se como exigência de um devir em vista de um "ser-mais", de uma intencionalidade a ser realizada: não pela efetivação mecânica de determinismos objetivos nem pela atuação energética de finalidades impositivas. O projeto humano se dá nas coorde-nadas históricas, sendo obra dos sujeitos aluando socialmente, num pro-cesso em que sua encarnação se defronta, a cada instante, com uma exigência de superação. É só nesse processo que se pode conceber uma ressignificação da "essência humana", pois é nele também, na frustração desse processo, que o homem perde sua essencialidade.' A educação pode. pois. ser definida como esforço para se conferir ao social, no desdobramento do histórico, um sentido intencionalizado, como esforço para a instauração de um projeto de efetiva humanização, feita através da consolidação das mediações da existência real dos homens.

Assim, só uma antropologia filosófica pode lastrear a filosofia da educa-ção. mas uma antropologia filosófica capaz de apreender o homem exis-tindo sob mediações histórico-sociais, sendo visto então como ser emi-nentemente histórico e social. Tal antropologia tem de se desenvolver, então, como uma reflexâo sobre a história e sobre a sociedade, sobre o sentido da existência humana nessas coordenadas. Mas. caberia per-guntar, a construção dessa imagem do homem não seria exatamente a tarefa das ciências humanas? Isto coloca a questão das relações da filosofia com as ciências humanas, cabendo esclarecer então que, embora indispensáveis, os resultados obtidos pelas diversas ciências humanas não são suficientes para assegurar uma visão da totalidade dialeticamente articulada da imagem do homem que se impõe construir.

As ciências humanas investigam e buscam explicar mediante a aplicação de seu categorial teórico, os diversos aspectos da fenomenalidade humana e, graças a isso, tornam-se aptas a concretizar as coordenadas histórico-sociais da existência real dos homens. Mas em decorrência de sua própria metodologia, a visão teórica que elaboram é necessariamente aspectual. Justamente em função de sua menor rigidez metodológica, é que a filoso-fia pode elaborar hipóteses mais abrangentes, capazes de alcançarem uma visão integrada do ser humano, envolvendo nessa compreensão o conjunto desses aspectos, constituindo uma totalidade que não se resume na mera soma das partes, parles estas que se articulam então dialeticamente entre si e com o todo, sem perderem sua especificidade, formando ao mesmo tempo, uma unidade. A perspectiva filosófica integra ao totalizar, ao unir e ao relacionar.

Não se trata, no entanto, de elaborar como que uma teoria geral das ciências humanas, pois. não se atendo aos requisitos da metodologia científica, a filosofia pode colocar hipóteses em niveis de maior alcance epistemológico. Assim, o que se pode concluir deste ponto de vista é que a filosofia da educação, em sua tarefa antropo-lógica, trabalha em intima colaboração com as ciências humanas no campo da teoria educacional, incorporando subsídios produzidos me-diante investigação histórico-antropológica por elas desenvolvida.

2. O Agir, os Fins e os Valores

De um segundo ponto de vista e considerando que a educação é funda-mentalmente uma prática social, a filosofia vai ainda contribuir significati-vamente para sua efetivação mediante uma reflexão voltada para os fins que a norteiam. A reflexão filosófica se faz então reflexão axiológica, perquirindo a dimensão valorativa da consciência e a expressão do agir humano enquanto relacionado com valores.

A questão diretriz desta perspectiva axiológica é aquela dos fins da educa-ção, a questão do para quê educar. Não há dúvida, entretanto, que, também nesse sentido, a tradição filosófica no campo educacional, o mais das vezes, deixou-se levar pela tendência a estipular valores, fins e normas, fundando-os apressadamente numa determinação arbitrária, quando não apriorística, de uma natureza ideal do indivíduo ou da sociedade. Foi o que ocorreu com a orientação metafísica da filosofia ocidental que fazia decorrer, quase que por um procedimento dedutivo, as normas do agir humano da essência do homem, concebida, como já vimos, como um modelo ideal, delineado com base numa ontologia abstrata.
Assim, os valores do agir humano se fundariam na própria essência humana, essência esta concebida de modo ideal, abstrato e universal. A ética se tornava então uma ética essencialista, desvinculada de qualquer referência sócio-histórica. O agir deve. assim, seguir critérios éticos que se refeririam tão-somente à essência ontológica dos homens. E a ética se transformava num sistema de critérios e normas puramente deduzidos dessa essência

Mas. por outro lado. ao tentar superar essa visão essencialista, a tradição cientifica ocidental vai ainda vincular o agir a valores agora relacionados apenas com a determinação natural do existir do homem O homem é um prolongamento da natureza física, um organismo vivo, cuja perfeição maior não é. obviamente, a realização de uma essência, mas sim o desenvolvimento pleno de sua vida. O objetivo maior da vida, por sinal, é sempre viver mais e viver bem! E esta finalidade fundamental passa a ser o critério básico na delimitação de Iodos os valores que presidem o agir. Devem ser buscados aqueles objetivos que assegurem ao homem sua melhor vida natural Ora. como a ciência dá conta das condições naturais da existência humana, ao mesmo tempo que domina e manipula o mundo, ela tende a lazer o mesmo com relação ao homem Tende nâo só a conhecê-lo mas ainda a manipulá-lo. a controlá-lo e a dominá-lo, transpondo para seu âmbito a técnica decorrente desses conhecimentos. A "naturalização do homem acaba transformando-o num objeto facilmente manipulável e a prática humana considerada adequada, acaba sendo aquela dirigida por critérios puramente técnicos, seja no plano individual, seja no plano social essa ética naturalista apoiando-se apenas nos valores de uma funcionalidade técnica

Em conseqüência desses rumos que a reflexão filosófica. enquanto refle xão axiológica, tomou na tradição da cultura ocidental, a filosofia da educação não se afastou da mesma orientação. De um lado, tendei a ver, como fim último da educação, a realização de uma perfeição dos indivíduos enquanto plena atualização de uma essência modelar; de ou-tro, entendeu-se essa perfeição como plenitude de expansão e desenvol-vimento de sua natureza biológica. Agora a filosofia da educação busca desenvolver sua reflexão levando em conta os fundamentos antropo-lógicos da existência humana, tais como se manifestam em mediações histórico-sociais, dimensão esta que qualifica e especifica a condição humana. Tal perspectiva nega, retoma e supera aqueles aspectos enfati-zados pelas abordagens essencialista e naturalista, buscando dar à filosofia da educação uma configuração mais assente às condições reais da existência dos sujeitos humanos.

3. A Força e a Fraqueza da Consciência

A filosofia da educação tem ainda uma terceira tarefa: a epistemológica. cabendo-lhe instaurar uma discussão sobre questões envolvidas pelo processo de produção, de sistematização e de transmissão do conheci-mento presente no processo especifico da educação. Também deste ponto de vista é significativa a contribuição da filosofia para a educação.
Fundamentalmente, esta questão se coloca porque a educação também pressupõe mediações subjetivas, ou seja, ela pressupõe a intervenção da subjetividade de todos aqueles que se encontram envolvidos por ela. Em cada um dos momentos da atividade educativa está necessariamente presente uma ineludível dimensão de subjetividade, que impregna assim o conjunto do processo como um todo. Desta forma, tanto no plano de suas expressões teóricas como naquele de suas realizações práticas, a educação envolve a própria subjetividade e suas produções, impondo ao educador uma atenção especifica para tal situação. A atividade da consciência é assim mediação necessária das atividades da educação.

É por isso que a reflexão sobre a existência histórica e social dos homens. enquanto elaboração de uma antropologia filosófica fundante, só se torna possivel, na sua radicalidade, em decorrência da própria condição de ser o homem capaz de experimentar a vivência subjetiva da consciência. A questão do sentido de existir do homem e do mundo só se coloca graças a essa experiência. A grande dificuldade que surge é que essa experiência da consciência é também uma riquíssima experiência de ilusões. A consciência é o lugar privilegiado das ilusões, dos erros e do falseamento da realidade, ameaçando constantemente comprometer sua própria atividade.

Diante de tal situação, cabe à filosofia da educação desenvolver uma reflexão propriamente epistemológica sobre a natureza dessa experiência na sua manisfestação na área do educacional. Cabe-lhe, tanto de uma perspectiva de totalidade como da perspectiva da particularidade das várias ciências, descrever e debater a construção, pelo sujeito humano, do objeto "educação". É nesse momento que a filosofia da educação, por assim dizer, tem de se justificar, ao mesmo tempo que rearticula os esforços da própria ciência, para também se justificar, avaliando e legitimando a atividade do conhecimento enquanto processo tecido no texto/contexto da realidade histórico-social da humanidade. Com efeito e coerentemente com o que já se viu acima, a análise do conhecimento não pode ser separada da análise dos demais componentes dessa realidade.

No seu momento epistemológico, a filosofia da educação investe, pois, no esclarecimento das relações entre a produção do conhecimento e o pro-cesso da educação. É assim que muitas questões vão se colocando à necessária consideração por parte dos que se envolvem com a educa-ção, também nesse plano da produção do saber, desde aquelas relacio-nadas com a natureza da própria subjetividade até aquelas que se encon-tram implicadas no mais modesto ato de ensino ou de aprendizagem, passando pela questão da possibilidade e da efetividade das ciências da educação. Com efeito, aqui estão em pauta os esforços que vêm sendo desenvolvidos com vista à criação de um sistema de saber no campo da educação, de tal modo que se possa dispor de um corpo de conhecimentos fundados numa episteme, num saber verdadeiro e consistente. Trata-se, sem dúvida, de um projeto de cientificidade para a área educacional.

No desenvolvimento desse projeto, logo se percebeu que o campo educa-cional. do ponto de vista epistemológico, é extremamente complexo Não é possivel proceder com ele da mesma maneira que se procedeu no âmbito das demais ciências humanas. Para se aproximar do fenômeno educacional foi preciso uma abordagem multidisciplinar, já que nâo se dispunha de um único acervo categorial para a construção apreensão desse objeto; além disso, a abordagem exigia ainda uma perspectiva trans-disciplinar, na medida em que o conjunto categorial de cada disciplina lançava esse objeto para além de seus próprios limites, enganchando-o em outros conjuntos, indo além de uma mera soma de elementos: no final das contas, viu-se ainda que se trata de um trabalho necessa-riamente interdisciplinar, as categorias de todos os conjuntos entrando numa relação recíproca para a constituição desse corpo epistêmico.

Esta situação peculiar tem a ver com o caráter predominantemente praxio-lógico da educação: a educação é fundamentalmente de natureza prática. uma totalidade de ação, não só se deixando reduzir e decompor como se fosse um simples objeto. Assim, quer seja considerada sob um enfoque epistemológico, quer sob um enfoque praxiológico, enquanto práxis concreta, a educação implica esta interdisciplinaridade, ou seja. o sentido essencial do processo da educação, a sua verdade completa. não decorre dos produtos de uma ciência isolada e nem dos produtos somados de várias ciências: ele só se constitui mediante o esforço de uma concorrência solidária e qualitativa de várias disciplinas.

Esta malha de interdisciplinaridade na construção do sentido do educa-cional é tecida fundamentalmente pela reflexão filosófica. A filosofia da educação não substitui os conteúdos significadores elaborados pelas ciências: ela, por assim dizer, os articula, instaurando uma comunidade construtiva de sentido, gerando uma atitude de abertura e de predispo-sição à intersubjetividade.

Esta visão interdisciplinar que se dá enquanto articulação integradora do sentido da educação no plano teórico, é igualmente expressão autêntica da prática totalizadora onde ocorre a educação. Enquanto ação social, atravessada pela análise cientifica e pela reflexão filosófica, a educação se torna uma práxis e, portanto, implica as exigências de eficácia do agir tanto quanto aquelas de elucidação do pensar.

Portanto tanto no plano teórico como no plano prático, referindo-se seja aos processos de conhecimento, seja aos critérios da ação, e seja ainda ao próprio modo de existir dos sujeitos envolvidos na educação, a filosofia esta necessariamente presente, sendo mesmo indispensável. E neste primeiro momento, como contínua gestora da interdisciplinaridade.

Mas não termina aqui a tarefa epistemológica da filosofia da educação. Com efeito, vimos há pouco que a experiência da subjetividade é também o lugar privilegiado da ilusáo e do falseamento da realidade. Sem dúvida, a consciência emergiu como equipamento mais refinado que instrumen-talizou o homem para prover, com maior flexibilidade, os meios de sua existência material Mas ao se voltar para a realidade no desempenho concreto dessa finalidade, ela pode projetar uma objetividade não-real. E o processo de alienação que a espreita a cada instante na sua relação com o mundo objetivo. Este é o outro lado da subjetividade, o reverso da medalha. Em sua atividade subjetiva, a consciência acaba criando uma objetividade apenas projetada, imaginada, ideada e não-real.

Ocorre que a consciência humana é extremamente frágil e facilmente dominável pelo poder que atravessa as relações sociais. Eis então o funcionamento ideológico da atividade subjetiva: o próprio conhecimento passa a ser mais um instrumento de dominação que alguns homens exercem sobre outros. A consciência, alienada em relação à realidade objetiva, constrói conteúdos representativos e avaliativos que são apresentados como ver-dadeiros e válidos quando, de falo. são puramente ideológicos, ou seja, estão escamoteando as condições reais com vista a fazer passar por verdadeira uma concepção falsa, mas apta a sustentar determinadas relações de dominação presentes na sociedade. Com efeito, é para legiti-mar determinadas relações de poder que a consciência elabora como objetivas, como universais e como necessárias, algumas representações que. na realidade social efetiva, referem-se apenas a interesses particu-lares de determinados grupos sociais.

Ora. todas as atividades ligadas à educação, sejam elas teóricas ou praticas, podem se envolver, e historicamente se envolveram, nesse pro-cesso ideológico De um lado. enquanto derivadas da atuação da consciência, podem estar incorporando suas representações falseadas e fal-seadoras; de outro lado, enquanto vinculadas à prática social, podem estar ocultando relações de dominação e situações de alienação. A edu-cação não é mais vista hoje como o lugar da neutralidade e da inocência: ao contrário, ela é um dos lugares mais privilegiados da ideologia e da inculcação ideológica, refletindo sua íntima vinculação ao processo social em suas relações de dominação política e de exploração econô-mica.
Assim, qualquer tentativa de intencionalização do social através da educa-ção. pressupõe necessariamente um trabalho continuo de denúncia, de crítica e de superação do "discurso" ideológico que se incorpora ao discur-so" pedagógico. É então tarefa da filosofia da educação desvelar critica-mente a "repercussão" ideológica da educação: só assim a educação poderá se constituir em projeto que esteja em condições de contribuir para a transformação da sociedade.

Deste ponto de vista, a consciência filosófica é a mediação para uma continua e alenta vigilância contra as artimanhas do saber e do poder, montadas no íntimo do processo educacional

Conclusão

A contribuição que a filosofia dá à educação se traduz e se concretiza nessas três frentes que. na realidade, se integram e se complementam Entendo que apesar dos desvios e tropeços pelos quais passou na história da cultura ocidental, a filosofia, enquanto filosofia da educação, sempre procurou efetivar essa contribuição, na medida em que sempre se propôs como esforço de exploração e de busca dos fundamentos. Mesmo quando acreditou tê-los encontrados nas essências idealizadas ou nas regulari-dades da natureza! E ela poderá continuar contribuindo se entender que esses fundamentos têm a ver com o sentido do existir do homem em sua totalidade trançada na realidade histórico-social.

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O papel da Educação na Sociedade Capitalista 


4 comentários:

  1. Ótimo vídeo de Valério Arcary sobre "O papel da Educação na Sociedade Capitalista" que contribui numa visão global da educação brasileira que sofre como este sistema capitalista os estudantes do nosso país. Percebe-se que a escola está construindo uma sociedade individualista e competitiva que é mais importante o "ter" do que o "ser".
    Os professores que são preocupados com a qualidade do ensino devem desconstruir esse pensamento de nossas crianças e estabelecer relações solidárias e humanísticas tanto com seus colegas quanto com seus professores, funcionários e gestores.

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